sábado, novembro 08, 2008

HARMONIA SECRETA




A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz.

Minhas equilibradas palavras são o luxo de meu silêncio.
Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas -- escrevo por profundamente querer falar.
Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.
E se eu digo "eu" é porque não ouso dizer "tu", ou "nós" ou "uma pessoa".
Sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu.
Sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real.

Ainda tenho medo de me afastar da lógica porque caio no instintivo e no direto, e no futuro: a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro.
Desde já é futuro, e qualquer hora é hora marcada.
Que mal porém tem eu me afastar da lógica?
Estou lidando com a matéria-prima.
Estou atrás do que fica atrás do pensamento.
Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.
Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo.(...)
Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante.
Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra.
Não quero perguntar por quê, pode-se perguntar sempre por quê e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta?
Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim.
E depois saberei como pintar e escrever, depois da estranha mas íntima resposta.
Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te falo, e sim outra coisa.
Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão.
Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas num caleidoscópio.
Entro lentamente na minha dádiva a mim mesma, esplendor dilacerado pelo cantar último que parece ser o primeiro.
Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura.
É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras -- limiar de entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer.


* Clarice Lispector in "água viva", círculo do livro, 1973.

1 Comments:

Blogger Sir Stephen e SUA maria{SS} said...

há tanta coisa linda no mundo, mas nada como a gente se sentir em harmonia com o mais profundo de nós mesmos...
beijos

maria{SS}

12:10 PM  

Postar um comentário

<< Home